TEREZA BETTINADI
Entrevista — 2019



PREFÁCIO


Em nossa quarta entrevista, conversamos com a designer Tereza Bettinardi [Santa Maria, 1983]. Formada em Desenho Industrial/Programação Visual pela Universidade Federal de Santa Maria e com mais de 10 anos de atuação profissional no mercado editorial, seu trabalho é reconhecido em projetos premiados nas bienais promovidas pela Associação Brasileira de Design Gráfico, Prêmio Jabuti, Latin American Design Awards, Prêmio da Música Brasileira, na categoria Projeto Visual, e 50 books/50 covers, promovida pelo American Institute of Graphic Arts [AIGA]. Em 2019, recebeu o certificado de excelência tipográfica concedido pelo Type Directors Club - NY.

Desde 2014, dirige seu próprio estúdio em São Paulo. É co-fundadora d'A Escola Livre, um projeto experimental que tem como objetivo iniciar um diálogo sobre novas formas de praticar e ensinar design. Além disso, foi professora em instituições de ensino em São Paulo e atualmente coordena o curso de Especialização em Design Gráfico da Escola Britânica de Artes Criativas [EBAC].




terezabettinardi.com



O Alforge. Escrito pela iraniana Bahiyyih Nakhjavani e publicado pela editora Dublinense para a TAG, em 2018. Ilustrações em nanquim de Adriano Rampazzo e bordados de Izabela Starling. O livro foi premiado com ouro no LAD Awards 2018




Soube que você desistiu da faculdade de Jornalismo. Como se deu sua passagem para o design naquele momento? Poderia nos contar sobre seu começo?


Cursei Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria até o 6º semestre. No primeiro ano, me envolvi no projeto do site do curso e acabei indo para o lado visual, desenhava e programava as páginas. Achava aquilo o maior barato e decidi que faria um novo vestibular para design gráfico - o curso se chama Desenho Industrial/Programação Visual. O plano era me formar nas duas faculdades, mas já no primeiro ano do curso de design não me imaginava escrevendo os textos, mas diagramando as páginas das revistas.

No 2º ano do curso design, acabei me envolvendo no movimento estudantil. Junto com outros colegas, organizei o N Design [Encontro Nacional dos Estudantes de Design - ndesign19.com.br], um evento tradicional promovido pelos próprios estudantes. Comecei a ler tudo relacionado ao design gráfico para convidar os palestrantes e pautar os debates e workshops do evento. Lia os livros, pesquisava os trabalhos, pensava em uma pauta. Era como se o campo do design gráfico fosse tema de uma reportagem. Este foi o gatilho para que abraçasse definitivamente a profissão.


Os primeiros anos são os mais difíceis para um designer, no que diz respeito a natureza dos projetos e identificação pessoal com o campo. Como foram estes primeiros anos e como você chegou ao mercado editorial?


Um pouco antes de me formar, montei meu primeiro portfólio com um único propósito: concorrer a uma vaga no Curso Abril de Jornalismo, programa que recrutava talentos - designers, jornalistas e fotógrafos - do Brasil inteiro e era disputadíssimo. Foi a minha primeira experiência de trabalho, em janeiro de 2006. Ficamos imersos em uma redação com gente de todo país - na minha turma estavam outros designers que se tornaram amigos, como Thiago Lacaz, Mateus Valadares - durante um mês inteiro pensando um projeto para revistas da Abril.

Foi nessa oportunidade que mostrei meu portfólio para o Alceu Nunes, que na época era diretor de arte da Superinteressante. Lembro que meu portfólio era formado por projetos da faculdade, como a revista do N Design, onde fui responsável pelos textos e pelo design. Nem TCC eu tinha feito na época. Ficamos em contato por uns 6 meses, até que finalmente, com da entrega do meu trabalho de conclusão, aceitei o convite para trabalhar na redação da Superinteressante. Ao todo, fiquei 3 anos na Abril. Foi uma experiência muito importante, eu diria que formadora da minha prática. Foi lá que ganhei agilidade ao pensar sobre soluções para diversas histórias, trabalhei com uma equipe formada por diversos profissionais [jornalistas, fotógrafos, ilustradores, revisores, produtores gráficos, etc]. Esse período também me ensinou uma coisa muito importante, como, por exemplo, que é preciso relativizar essa ideia de que precisamos ter "identificação pessoal" com o trabalho. Minha função é ajudar o leitor/leitora a ter acesso ao conteúdo da maneira mais clara possível. Claro que para executar essa tarefa, uma dose de subjetividade está presente. Mas, por outro lado, se eu trabalhar só com coisas próximas ao meu gosto pessoal, como vou descobrir coisas novas?

Eu tenho muita implicância com a ideia de que em cada trabalho, precisamos liberar fantasias gráficas latentes. Vira uma espécie de salvo-conduto para qualquer coisa. Essa crença de que é preciso se enxergar no trabalho é uma ideia muito limitante na minha opinião, fonte de frustração para muita gente que está começando. Acho que sofreríamos menos se entendêssemos muito cedo que a encomenda de um serviço de design gráfico, em primeiro lugar, diz respeito ao trabalho e não sobre o designer.

Bom, depois dessa experiência na Editora Abril, fui trabalhar no estúdio do designer Kiko Farkas. Foi um período bem curto mas super intenso. Foi lá que experimentei outras vertentes do design editorial – minha primeira capa de livro, etc. Era um estúdio pequeno dirigido por um designer bastante autoral. Então o desafio era encontrar as brechas dentro do processo do Kiko para poder experimentar. Depois desse período, quase 1 ano, fui para a "vida de freelancer", trabalhando com projetos editoriais para a Abril e também outros clientes.


São Paulo. Detalhe do estúdio da designer




Parte da sua formação profissional se deu na prática do design de revistas, como a  Capricho e a Superinteressante . É comum entendermos que o design de revista possui uma dinâmica muito própria quando comparado a outros impressos, como o livro. Como foi essa mudança na ida para outros escritórios como a Cosac Naify? Poderia nos falar um pouco sobre sua passagem por lá?


Depois de 3 anos como freelancer, surgiu a oportunidade de trabalhar na Cosac Naify. Meu interesse em ir para a Cosac era, além dos livros, entender o processo editorial dos livros de design gráfico. Esse trabalho era coordenado pela Elaine Ramos e, embora a equipe de design não tivesse muita ingerência sobre os títulos de design que seriam publicados, foi bem interessante ver os bastidores desse processo.

Foram 2 anos na Cosac e foi tudo muito intenso. Lá também pude trabalhar com outros designers super talentosos como o Paulo Chagas, Gabriela Castro [atual Bloco Gráfico], Flávia Castanheira, Nathalia Cury [Estúdio Margem]. Aprendi muito com a equipe, não só os designers mas também com os editores [Isabel Lopes Coelho, uma referência em literatura infanto-juvenil, Miguel Castilho, Heloisa Jahn, Marta Garcia, Milton Ohata e muitos outros], produtores gráficos [Lilia Góes, Aline Valli], e tantos outros talentos que passaram.

Por outro lado, o ritmo era intenso. Tudo era feito internamento: projeto gráfico, composição, acompanhamento gráfico, reimpressões. Fora as inúmeras reuniões com diversas pontas do desenvolvimento do projeto. Então foi um grande intensivo, um período que me ajudou a amadurecer diversas questões sobre a prática do design gráfico e principalmente sobre o mundo editorial. Depois que saí dessa experiência, em 2014, abri meu próprio estúdio.


Matisse, uma vida. Capa para Cosac Naify




Já algum tempo o mercado editorial sofre uma grave crise. Em 2018, duas das maiores redes varejistas do país, as livrarias Cultura e Saraiva, entraram com pedidos de recuperação judicial. No mesmo ano, em novembro, o editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, publicou uma carta aberta sobre a situação do setor. O Brasil vive hoje ainda um momento político estranho e conturbado. Como você enxerga este cenário?


Acho que podemos analisar isso sob diferentes aspectos. O primeiro diz respeito ao mercado suas relações: novas formas de distribuição e produção [crowdfunding, clube de assinaturas, impressão sob demanda, etc]. É preciso que os designers contribuam para encontrar novas formas de produzir. Depois, é importante pensar o futuro desse mercado sob a perspectiva do ensino. Vejo muita gente interessada em produzir seus próprios livros ou mesmo se dedicar ao design editorial. Acho incrível, afinal, design editorial é minha paixão e é muito legal ver mais gente interessada pela área. Mas com a redução da publicação de títulos, onde essas pessoas vão trabalhar? Como o mercado vai se sustentar? Enfim, tenho mais perguntas do que respostas.


Pensando ainda um pouco sobre isso, como você enxerga o seu trabalho dentro desta cadeia cultural e sobre como isso impacta as pessoas?


Eu prefiro pensar neste impacto dentro de uma perspectiva um pouco maior, fora da "cadeia cultural". Aliás, me incomoda demais essa crença de que o trabalho com cultura é "moralmente superior" quando comparado a outros mercados. Se tem algo que essa crise no mundo do livro nos mostra é que, no fim do dia, isso também precisa funcionar enquanto negócio.


Memórias Póstumas de Brás Cubas. Desenhado para a editora Carambaia, o mix tipográfico e seus contrastes estão entre as características deste projeto. Ilustrações de Heloisa Etelvina.




Você desenvolve outros projetos, atuando como acadêmica na EBAC (Escola Britânica de Artes Criativas) e com A Escola Livre, projeto seu em parceria com Guilherme Falcão. Poderia nos falar um pouco sobre este projeto?


A Escola Livre foi um projeto que fundei com o Guilherme Falcão e foi o balão de ensaio de muitas coisas que hoje estão totalmente inseridas na minha prática. Um espaço de pesquisa, prática e diálogo entre designers gráficos e interessados em projeto. Nossa proposta foi criar um ambiente solidário de aprendizagem com a troca e compartilhamento de conhecimentos e experiências.

Foram 2 anos muito intensos que incluíram entrevistas com designers, workshops e a publicação de dois livros - um com resultado de uma atividade e outro com parte das entrevistas. Acredito que boa parte dos próximos passos da minha prática no design gráfico têm origem a partir dessa experiência.


1. Tereza Bettinardi e Guilherme Falcão no  Museu da Casa Brasileira.  2. Livro de entrevistas d’A Escola Livre.  3. Oficinas realizadas pela Escola Livre  4. A Escola Livre durante a Plana Festival




Como você enxerga a questão da regulamentação do exercício profissional de designer no Brasil?


Sou completamente contra este projeto de regulamentação. Escrevi textos sobre isso em 2013-2014, com outros designers, na época que este projeto estava em votação no congresso. Na época fizemos a pergunta: a quem interessa a diferenciação dos profissionais de design?

Sabemos que, historicamente, o design não floresceu no Brasil por decreto. Devemos nos perguntar, portanto, não apenas o que os designers ganham com a lei, mas também o que podem perder. Quantas pessoas seriam impedidas de utilizar tal alcunha se houvesse uma lei similar hoje em vigor? Que impacto esse impedimento poderia ter na sua atuação? Pouco se discutiu, por exemplo, o que pode ocorrer no mercado de cursos de design com a súbita valorização do diploma. Penso que, atualmente, os termos que o Estado utiliza para regular o exercício das profissões podem ser inadequados ao desenvolvendo do design no país. Isso pode oferecer riscos ainda desconhecidos às dinâmicas sociais em andamento.



Sou completamente contra o projeto de regulamentação do exercício profissional de design no Brasil. A quem interessa a diferenciação dos profissionais de design? Quantas pessoas seriam impedidas de utilizar tal alcunha se houvesse uma lei similar? Atualmente, os termos que o Estado utiliza podem ser inadequados para o design.



Dancê. Tulipa Ruiz, 2015




Falando um pouco sobre o seu trabalho: que critérios você utiliza para realizar as escolhas tipográficas para um livro? Alguma abordagem específica?


Muitos designers costumam justificar suas escolhas tipográficas com a época em que a obra foi escrita. Às vezes funciona. É uma maneira de conectar leitores com o espírito e época do texto. Penso que a tipografia funciona como essa chave-mestra, com o poder de nos teletransportar. Mas esta conexão com a época em que o romance foi escrito é sempre desejável? Algumas vozes podem ser atualizadas? Então, o meu critério é uma combinação de diversas perguntas como esta. Além disso, é importante que a tipografia tenha todos os recursos técnicos que eu necessito para um determinado projeto.


Dentre as capas desenhadas, alguma versão não aprovada que consta como sua preferida?


Poxa, essa pergunta é um pouco complicada. Sempre falo em palestras que para uma capa nascer, milhares de outras deixaram de existir. Sempre fico em crise com capas de livro e, às vezes, mando muitas opções e devo deixar os editores de cabelo em pé. Claro que às vezes o editor pode escolher um caminho que não é o meu preferido… mas eu também gosto de pensar que uma capa é resultado de um diálogo. Para algo existir no mundo, ela passou pela mão de muita gente. É por isso que tenho muita dificuldade em ter um projeto pessoal, algo em que eu sou meu próprio cliente. É muito sofrimento! Eu preciso conversar com as pessoas.

Sobre a discussão de capas aprovadas/reprovadas, tem um outro aspecto interessante que se relaciona com outra questão. Por exemplo: eu não tenho no meu portfólio nenhum mockup digital. É uma questão conceitual mesmo. Para mim é interessante apresentar o projeto real, da forma como ele existe no mundo, de forma material.


Viagem ao Volga - Ahmad Ibn Fadlān | Editora Carambaia. No século X, Aḥmad Ibn Faḍlān fez uma expedição de Bagdá para as terras do norte, até chegar a um assentamento viking nas margens do rio Volga. Durante onze meses de uma jornada extenuante, Ibn Faḍlān registrou as maravilhas que testemunhou, incluindo uma descrição das luzes do norte. Este foi o ponto de partida para pensar o design deste livro, referenciado no uso de recursos de produção gráfica, como o hotstamping holográfico. Esta edição incluiu o texto original em árabe.





Quem são tuas referências mais contemporâneas?


Eu costumo dizer que não tenho heróis no design gráfico. Por outro lado, alguns encontros e descobertas são transformadores. Alguns designers me acompanham desde a época da faculdade e outros um pouco mais recentes: Tibor Kalman, Jonathan Barnbrook, Corita Kent, Nikki Gonnissen, Peter Bilak, Ruben Pater. São pessoas que me inspiram não só pela aparência formal do trabalho, mas pelas atitudes, opiniões e ideias. É isso que me interessa.


Que outras atividades te interessam além do design?


Viajar!


Por fim: que conselho você daria a você mesma no início de carreira?


É o mesmo conselho que repito até hoje: continue curiosa!


Tereza Bettinardi durante o Latin American Design Awards 2018, na cidade de Lima, Peru






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