Anatomia do Processo Criativo Visual - Abordagem
Artigo — 2018



El Lissitzky - Anxious People, 1923



1. CAPELA


No pré-histórico dilema da parede/papel/tela em branco, nos curvamos sobre as possibilidades de uma construção visual sob três níveis: o representacional, o abstrato e o simbólico (Dondis, 1973). Embora cada palavra-chave categorize a produção visual, não encerra em si outras possibilidades. Não são antagônicas, opostas ou mesmo exclusivas, tão pouco anulam a força esquemática que demais taxonomias possuem em seus alicerces mais puros e terminológicos.

Como categorias, explicam muitas questões, mas reside justamente na possibilidade de interação e sobreposição entre elas a probabilidade para que o jogo semiótico aconteça em níveis mais elaborados e conceituais. É aqui então que a tarefa compositiva e seus resultados tornam-se mais ricos e capazes de uma nova tradução, de tocar com a pontas dos dedos o teto da capela de nossa criatividade e inovação. De transformar o objeto-imagem em uma apreciação investida de experiência e sentimento.



Donis A.Dondis. Uma proposta para compreender a anatomia da mensagem visual em seus três níveis: representacional, abstrata e simbólica - Sintaxe da Linguagem Visual, 1973



2. COEFICIENTE EM AÇÃO


O design gráfico pode então ser entendido como o coeficiente que age sobre os vértices desse triângulo: o representacional (a fotografia, por exemplo), o abstrato (a ilustração/pintura não realista, por exemplo) e o simbólico (a escrita, por exemplo). Em suas razões de berço, durante a Revolução Industrial, o processo criativo cabia entre quatro paredes de um arcabouço por ser entendido como resposta, como a elaboração de esquemas para linhas de montagem e possibilidades para a reprodutibilidade técnica. Tarefa complexa.

Posteriormente, segundo Ellen Lupton em seu prefácio para o livro Graphic Design Theory: Readings from the Field (Helen Armstrong, 2009) “os modelos iniciais de design gráfico tinham como fundamento os ideais de anonimato, e de não autoria. No começo do século 20, artistas de vanguarda como El Lissítzki, Aleksandr Ródtchenko, Herbert Bayer e László Moholy-Nagy consideravam as obras assinadas do velho mundo da arte como vergonhosamente elitistas e egocêntricas. Na opinião deles, essas visões burguesas e subjetivas corrompiam a sociedade. Em vez disso, eles buscavam um futuro no qual a forma se inspirasse na máquina – funcional, concisa, ordenada, racional. À medida que o design gráfico se constituía como profissão, a objetividade tomou o lugar da subjetividade como ideal. A neutralidade substituiu, de certa forma, a emoção. Na vanguarda, o artista/designer acabou eclipsado pela busca da comunicação imparcial.” Questões ainda hoje referenciadas e questionadas.


3. MAPEAMENTO FERRAMENTAL


Podemos entender que, durante os anos de construção da disciplina, as vanguardas e escolas formadoras, como a Escola de Ulm (1953-1968), estavam atentas ao potencial que o discurso matemático traria à justificação de seus processos e resultados. Talvez um caminho natural para uma profissão projetual. Mesmo os gregos perceberam a importância da proporção e da concepção matemática para definir certos parâmetros e premissas para a Beleza - o que é a Proporção Áurea se não uma constante real algébrica irracional. Mas, como toda prática criativa, o design evoluiu. Ao se entrelaçar com movimentos artísticos e até mesmo políticos/sociais, ganhou corpo para alcançar sua maioridade e andar com suas próprias pernas.

Após formalizar suas estruturas básicas através da investigação e do mapeamento de toda tipologia ferramental para gerações futuras, este agora conhece suas regras e encontra oportunidade para quebrá-las. Durante sua evolução, “como todo bom ser humano”, abandonou algumas questões, as quais retomou posteriormente, como a prática artesanal e a autoria. Estruturou-se em organogramas empresariais, ganhou a alcunha de artista/departamento e se fundou como profissão antes mesmo de perceber sua tradição. É provável que só nos últimos 40 anos (1960 - 2000) tenha encontrado possibilidade para se auto referenciar alheio às estruturas narrativas da arte, da arquitetura, da psicologia e da semiótica: designers designing design – tema para outro artigo. Sobre isso, ainda vale muito refletir.


Forma, Função e Sentido. O primeiro pôster foi criado por Margarete Kögler para a aula de Otl Aicher. As posições desenvolvidas na Escola de Design de Ulm (Hochschule für Gestaltung, HFG) apresentavam premissas métricas e puristas sobre a tarefa compositiva



Prova disso é o consumo de uma vasta informação visual através de plataformas como o Behance. É claro que estes resultados estão também pautados sobre outros valores, dentro de seus processos de investigação. É claro que designers como El Lissítzki foram fontes de inspiração para outros criativos, tanto em seu tempo quanto atualmente. Falo de uma referência estrutural da própria disciplina.

Falo da possibilidade de ter sobre a mesa os estudos de grid de Josef Müller Brockmann, de consultar os escritos sobre a nova tipografia de Jan Tschichold, de ser influenciado diretamente por obras como o Igarashi Alphabets (1987, Takenobu Igarashi), Language of Vision (1944, Paul Theobald), Thoughts on Design (1947, Paul Rand), Typography: Basic Principles (1964, John Lewis), Design as Art (1966, Bruno Munari), a Sign Systms Manual (1970, Crosby / Fletcher / Forbes – mais tarde Pentagram), Graphis Diagrams (1974, org. Walter Hedeg), The Liberated Page (1987, org. Hebert Spencer), Graphic Styles (1988, Steven Heller e Seymour Chwast), The Typography Now (1991, Rick Poynor e Edward Booth-Clibborn), The End of Print (1995, Lewis Blackwell e David Carson) e Multiple Signatures (2013, Michael Rock).

Ou ainda, ser influenciado pelo trabalho de outros designers, como Alexandre Wollner, Aloísio Magalhães, Herb Lubalin, Irma Boom, Jan van Toorn, Massimo Vignelli, Milton Glaser, Philip B. Meggs, Paula Scher, Saul Bass, Stefan Sagmeister, Tibor Kalman, entre tantos.


Takenobu Igarashi - Igarashi Alphabets, 1987





Lewis Blackwell e David Carson - The End of Print, 1995



4. QUEBRANDO REGRAS


Ora, com sua consolidação estrutural, o estabelecimento e posteriormente a ruptura de suas regras, permite que o processo criativo visual alcance um novo e deliberado horizonte: o semântico. Diz a Wikipedia que este “estuda o significado e a interpretação do sentido de uma palavra, de um signo, de uma frase ou de uma expressão em um determinado contexto”. Ou seja: o design busca uma resposta para além de valores absolutos e representativos. Vejamos então os seguintes exemplos:


4.1. IBM - PAUL RAND
Atento a essa capacidade de representação-abstrata-simbólica, Paul Rand desenhou em 1981 para a IBM o famoso cartaz Eye Bee M. Uma variação sobre sua matriz capaz de nos levar a perceber que, quando articulados, os elementos chave que estruturam a composição visual alcançam um novo nível: de uma experiência com outras camadas, refletindo, fragmentando e reconstruindo seu próprio Contrato de Leitura (Eliseo Verón, 1986), o que permite uma multiplicação perceptiva visual.


Paul Rand. IBM logo (1972) e cartaz Eye Bee M (1981). Criado para um evento interno, a empresa vetou inicialmente a divulgação do cartaz, temendo que o design ameaçasse os seus padrões gráficos 




4.2. FRIENDS OF THE HIGH LINE - PAULA SCHER
Em outro caso, ao criar em 2001 a identidade visual para Friends of the High Line, Paula Scher trabalha com os três níveis. É representacional por referenciar visualmente a estrutura dos trilhos. É abstrata por reinventar essa representação de forma singular. É simbólica por estabelecer um vínculo com a letra H, recriando dentro do próprio caractere um novo acordo arbitrário para a comunidade sobre o que então representará visualmente aquela organização. É então que o discurso visual ganha forma e força. Ele articula estruturas básicas para alcançar outro sentido. Podemos dizer que um novo sentido.



Logo para Friends of the High Line - Paula Scher, 2001.Quando fiz o logo do High Line, o objetivo era parecer mais com trilhos do que com um H. Usando o peso que deixe o traço parecido com um trilho, com duas barras na horizontal, o símbolo parecia industrial. O que muda totalmente o espírito, sem precisar criar uma narrativa ilustrativa.” — Paula Scher




5. STATUS QUO


Ao que tudo indica, o design não se vale mais de obviedades. O nível representacional pode ser uma armadilha pobre. Já não é possível usar simples balanças para falar sobre justiça, ou estetoscópios para referenciar o campo da medicina. Tão pouco usar notas musicais para falar sobre música. É aqui que reside o desafio. É preciso articular outras possibilidades para reinventar antigos paradigmas, para fazer uso positivo de clichês, para talvez encontrar neste, um suporte referencial e não uma solução final.

Por muitos anos escutamos que a diferença entre o design e arte residia na função e delimitação de sentidos de um e na liberdade estilística e expressiva do outro. O design serve para algo ou dá função e sentido para alguma coisa. O design cria sistemas e estruturas atreladas à reprodutibilidade técnica. Então, a arte repousaria sobre a possibilidade do sentir, ainda que ela atinja e perturbe a nossa forma de olhar e pensar o mundo. Uma confusão estrutural por parte de quem profere não gostar de arte por não entender o seu significado!

Após a execução exacerbada da forma e da função (1), da estruturação racional pós-guerra (2) e do caminho natural que previa a formação de uma disciplina amparada por valores canônicos, racionais em sistemas matemáticos (3), o design se revestiu de uma armadura importante e necessária para enfrentar a crítica sobre o seu labor. Em grande parte, nossos esforços atuam sobre duas tensões: as intenções iniciais e as intenções finais. Mas é nesta última que o design contemporâneo passou a se reencontrar com a arte. No esgotamento de um discurso representacional, na busca por experiências mais valiosas, "é sempre uma espécie de viagem: quanto mais você olhar, quanto mais você vai ver, e quanto mais você vê, melhor se torna." (Irma Boom, 2011). Para o crítico de arte Lorenzo Mammí (2012), “a obra de arte é o que resta a dizer, uma vez esgotados todos os outros discursos.” Dissecada a anatomia desses processos, precisamos agora refletir sobre os sentidos de nossa prática criativa.





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