Critérios da Artificialidade - Parte 1
Um Girassol Para o Algoritmo
Artigo — 2024




Vincent van Gogh. Doze girassóis numa jarra, 1888



Este ensaio foi dividido em duas partes e cresceu conforme foi escrito. Obedecendo assim um fluxo de pensamentos, leituras e conversas sobre o tema ao longo dos últimos meses. Ele está aberto a percepções, não pretendendo, com isso, encerrar as discussões ou gravar conceitos.





girassol

angiospermas
a.
Erva sublenhosa, de caule ereto, folhas ovadas, serreadas, grande capítulo de flores amarelas em receptáculo esponjoso, envolto por brácteas de um amarelo puro, e aquênios ovoides, oleaginosos, com casca dura, rajada de branco e preto; helianto, verrucária. Possui variedades cultivadas para produção de mel e de tintura amarela, pelos aquênios comestíveis, de que se extrai fino óleo.
b. comum às plantas cuja flor se volta para o sol; heliotrópio, tornassol.




A interseção entre inteligência artificial, imagens e algoritmos representa uma das fronteiras mais dinâmicas e inovadoras da tecnologia contemporânea. Com o avanço dos algoritmos de aprendizado de máquina, a capacidade de processar, analisar e gerar imagens de maneira automatizada tem crescido exponencialmente. Neste contexto, este ensaio propõe uma reflexão sobre como estas novas tecnologias estão redefinindo a produção de imagens, na tentativa de entender tipologicamente sua produção, desafios e camadas.



Neste ensaio, tomaremos como exemplo as diversas representações imagéticas de um girassol, referenciando diferentes contextos no espectro de sua realização pelo prompt de comando. De forma paralela, refletimos brevemente sobre esta produção e sua recepção dada pelo espectador dentro de um Sistema de Audiência Ativa - SAAT.

Os Sistemas de Audiência Ativa são meios de comunicação que permitem o compartilhamento, a produção, edição, interação e criação de conteúdos como textos, imagens e vídeos (como redes sociais, documentos compartilhados em níveis de edição e bancos de imagem). De outra forma, um sistema passivo permitiria, em um primeiro momento, apenas a recepção, como a tv, o rádio e o impresso.

Sobre isso, abre-se uma lacuna para se repensar critérios de autoria (ainda não resolvidos, mesmo em níveis e em sistemas menos complexos), dado as diversas possibilidades técnicas presentes nestes sistemas pautados cada vez mais pelo prossumismo. Recomendamos aqui a leitura do artigo Designer como Autor (Designer as Author - Michael Rock) para uma reflexão sobre o tema.


Víctor Arce. CD-ROM Datadreams, 2024






FLORES PARA UM NOVO SOL


No contexto alegórico da caverna de Platão, fomos apresentados ao mundo das ideias, onde todas as coisas se encontram em um estado de realidade intelectual, verdadeira, eterna e imutável. De forma similar, há um plano ideal inserido no conceito de cada imagem ao ser produzida - seja pela mão humana, seja pela inteligência artificial.

Quando produzimos a imagem de um girassol, por exemplo, encontramos um conjunto de pistas sobre o que isto significa em nosso repertório. De forma semelhante, o prompt precisa de um conjunto de informações para estruturar uma resposta - baseado em um significado ideal. Como um plano desenhado por um conjunto de dados para encontrar uma sequência de raciocínios (e sentimentos, no caso dos humanos), instruções ou operações para um objetivo através de passos finitos, operados sistematicamente. Tarefa complexa que envolve inúmeras variáveis.

Sobretudo, no quis respeito a referência. A inteligência artificial precisa encontrar comandos e referências para sua criação. E aqui reside um ponto importante: a criatividade humana, por vezes, navega no limite da curva da referência (e talvez fora dela). O novo, como construção de uma percepção, narrativa ou experiência, pode ser um desafio maior dentro de um circuito que dá voltas em torno daquilo que encontra. Ainda não está muito claro sobre como esse movimento pode evoluir, e sobre como essa produção artificial pode dar passos em direção a descoberta.

Neste percurso, percebemos que a geração de uma imagem está inserida em diferentes possibilidades. Ao tomar um girassol como objeto a ser representado, e tomando como base referências e comandos, enxergamos três níveis de linguagem que podem indicar camadas criativas mais abstratas ou elaboradas. Vamos a eles.


A equação da imagem no seio humano: além do aspecto emocional, podemos pensar em parâmetros como cultura, religião, realidade econômica, contexto histórico e político.


Chuqiao Liu. Jianghu, 2022






PRIMEIRO NÍVEL ︎︎︎ REALIDADE REPRESENTATIVA


A tela como tecido frágil. A tela como transgressível. A destruição da tela é a única forma de resistência que resta, por mais vaziamente simbólica que seja. O famoso anúncio da Apple, em 1984, com a garota balançando o martelo. Dezenas de estrelas do rock infelizes, seguindo Elvis, com suas armas disparando em suas telas. Michael Rock



O nível representativo é o mais elementar, mas não necessariamente o mais simples. Neste primeiro nível, o girassol deve estar dentro do espectro do que enxergamos no mundo. A linguagem estética deve ser capaz de dar forma a imagem fotográfica, indistinguível daquilo que entendemos por realidade. Este nível encontra uma particularidade: o prompt trava uma luta contra sua própria artificialidade, a qual será capaz de denunciar sua representatividade e simulação, caso falhe.

Dentro de um sistema de audiência (aqui, ativa ou passiva), a representação será submetida a parâmetros de fidelidade, credibilidade e verossimilhança. Os sintomas de sua artificialidade podem colocar esta imagem entre este e os próximos níveis - ou simplesmente arruinar a experiência. Avaliamos e validamos assim o girassol pelo tempo de exposição para este novo sol: os nossos olhos que repousam sobre as telas.


Gustav Klimt. Farm Garden with Sunflowers, 1913 







SEGUNDO NÍVEL ︎︎︎ ABSTRAÇÃO FIGURATIVA


Eu quis fazer um quadro que assustasse o Oswald, uma coisa que ele não esperava. O Abaporu era uma figura monstruosa. Oswald ficou assustadíssimo e perguntou: Mas o que é isso? Que coisa extraordinária! Ele telefonou para o Raul Bopp: Venha imediatamente aqui, que é para você ver uma coisa! Raul Bopp foi lá no meu ateliê, na rua Barão de Piracicaba, assustou-se também. Oswald disse: Isso é como se fosse selvagem, uma coisa do mato, e o Bopp concordou. Tarsila do Amaral



A abstração figurativa refere-se ao uso de representações que evocam significados em um jogo estético não-alienado inteiramente a realidade (ver o quadro acima). Trata-se da capacidade de transmitir emoções, ideias e narrativas por meio de metáforas e associações imagéticas. As imagens figurativas não apenas retratam objetos ou cenas do mundo real, mas também provocam interpretações pessoais e coletivas, enriquecendo a comunicação, seu nível de abstração, de interpretação e de recepção.

Esse aspecto é fundamental em diversas formas de arte e mídias digitais, onde as imagens não apenas dão pistas da realidade (o mundo aqui fora), mas dizem dos contextos, visões e emoções do próprio criador (o mundo aqui dentro). Neste nível, o girassol não encontra compromisso com o real, apenas, multiplicando assim suas formas de expressão sem deixar de ser percebido. A imagem encontra então compromisso com as abstrações e visões de um mundo antes impossível.

Será importante perceber que, neste nível, dentro de um sistema de audiência ativo, a representação dada pela pintura ou expressão plástica visual pode ser direcionada pelo algoritmo ainda com novas possibilidades, como:

a. ao apresentar o labor artístico do processo (sua confecção pode ser percebido como elemento de validação superior ou igual a obra final); b. ao apresentar um contexto ou cenário com potencialidades imersivas de interação a causa ou linguagem (o desenho de um girassol pintado por crianças dentro de um contexto sensível, por exemplo); c. ao se apresentar como simulacro ou referência a obra, artista ou escola estética já reconhecida e validada.

De certa forma, estes pontos podem ser contemplados em outros níveis, mas encontrará maior potência aqui, entre o real e a total abstração, uma vez que o seu principal objetivo não está na construção de uma percepção do real, apenas, mas nas aliterações, fantasias e experiências que o rodeiam e se somam.



Wassily Kandinsky. Small Worlds I, 1922







TERCEIRO NÍVEL ︎︎︎ SIMBOLISMO REFERENCIAL


(...) Eu não estava querendo que meus sonhos interpretassem minha vida, mas antes que minha vida interpretasse meus sonhos. Susan Sontag


Este nível se relaciona a uma maneira de entender a realidade que transcende a simples alegoria ou mimetização. Este conceito abrange formas artísticas, as quais podem soar como complexas para a máquina (enquanto criação original), não preocupada com a retratação direta de objetos ou figuras reconhecíveis - embora ainda possa existir aqui um nível de desafio sobre a representação de uma ideia ao redor do que aquilo possa significar.

Aqui, o girassol surge dentro de uma abordagem que confronta a forma tradicional de ver e interpretar o mundo, enfatizando as experiências subjetivas nas relações dinâmicas que formam a realidade. Será ele, então, uma não-representação do real, muito mais próximo, portanto, de um ensaio sobre a psiquê humana e seus anseios.

Podemos tomar como exemplo o trabalho de Vasily Kandinsky e Piet Mondrian para dar forma a este nível de abstração. Kandinsky, por exemplo, com suas composições vibrantes e dinâmicas, utiliza cores e formas para evocar emoções e estados de espírito, transcendendo a necessidade de representar objetos visíveis, propondo uma nova linguagem visual. Piet Mondrian, com sua abordagem mais geométrica e rigorosa, revela a ordem e a harmonia através de linhas e planos de cores primárias, apontando para a abstração pura como um meio de alcançar uma verdade estética.

Esses artistas exemplificam como o simbolismo referencial nos propõe uma nova forma de interação com a obra, e com a produção de imagens, onde o significado emerge das relações e experiências que criamos com o que está diante de nós, em um diálogo contínuo entre a arte e a psique humana. Assim, o girassol, longe de ser apenas uma representação botânica, se torna aqui um símbolo carregado de significados que invita à exploração das complexidades da nossa existência e a busca por uma compreensão mais profunda da realidade. Mas perceba: somos nós, seres sensíveis, que atribuímos valores e percepções sobre a sua imagem.


George Byrne. Pink Cadillac e Liquor Store, 2024


"A nova série de colagens fotográficas do fotógrafo de Los Angeles, Synthetica, nos leva a questionar o que realmente faz parte de suas cenas urbanas" — Ellis Tree / Its Nice That






ÂNGULO DE ABSTRAÇÃO 


Ao abordar o girassol como exemplo de estudo, exploramos três camadas distintas de interpretação - a realidade representativa, a abstração figurativa e o simbolismo referencial - que revelam a complexidade e o potencial da produção imagética contemporânea. Cada nível não apenas amplia a compreensão estética, mas também reflete a dinâmica entre a criatividade humana e as capacidades artificiais, questionando a autenticidade e a profundidade da experiência visual. Sobretudo, quando observamos o ângulo de abstração e borramos as linhas que separam os níveis, dando margem a novos signos, experimentos e possibilidades. 



Ângulo de abstração. Não está claro se o ângulo de abstração exigirá maior carga de comandos e contextos para o algoritmo. A Realidade Representativa exige maior critério de fidelidade ao mundo (e será mais facilmente percebido em suas falhas). Por outro lado, a ângulação parece indicar maior subjetividade, implicando em uma maior carga humana para sua interpretação.




Neste contexto, é vital reconhecer que a artificialidade reside no esvaziamento do sentido das imagens e não na técnica utilizada. Processos e sistemas analógicos também não garantem resultados repletos de significação, evidenciando que o verdadeiro impacto da imagem está na sua capacidade de evocar experiência e reflexão. Sobre isso, precisamos entender o que estrutura, na verdade, a ideia de artificialidade (nosso próximo ensaio), afim de entender o que então percebemos no contexto das imagens.

Assim, ao navegarmos neste território envolto em inovação tecnológica, devemos considerar como essas interações moldarão não apenas a produção artística, mas também a nossa própria compreensão da realidade, sublinhando a importância de atribuir valor e significado às imagens que nos cercam. Um ato humano.




A compreensão dos parâmetros que dão estrutura à artificialidade será objeto de discussão na segunda parte deste ensaio. As seguintes obras foram consultadas: 

  1. The Creative Act - Rick Rubin
  2. A Galáxia de Gutemberg - Marshall McLuhan
  3. Art and Visual Perception - Rudolf Arnheim
  4. The Beuty of Everyday Things - Soetsu Yanag
  5. Dicionário de Filosofia - Nicola Abbagnan
  6. O Que Resta: Arte e Crítica de Arte - Lorenzo Mamm
  7. On Photography - Susan Sontag
  8. Elementos de Semiótica Tensiva - Claude Zilberg





Continue lendo ︎︎︎ Gustavo Piqueira / Entrevista


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