EDUARDO FREIRE / TOMBAMENTO, AFETOS CONSTRUÍDOS

Entrevista — 2015



Nosso primeiro estudo de caso apresenta o livro Tombamento, Afetos Construídos, de Manoela Queiroz Bacelar. O design é assinado pelo jornalista, professor e designer Eduardo Freire, que nesta entrevista, apresenta os detalhes desta obra, seus processos e histórias que fazem parte dos seus 30 anos de profissão.




EDUARDO FREIRE



Sou Eduardo Freire, jornalista e designer gráfico. Me formei em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará, em 1995. Comecei no design gráfico em 1990, quando passei em um concurso para trabalhar na Imprensa Universitária da UFC. No início era tudo produzido com tecnologia analógica, não tínhamos ainda computadores, só chegaram lá por volta de 1992. Até então era past up, prancheta, letraset, fotolito, tipografia móvel e linotipo. Foi uma base bem interessante para depois quando veio o computador, que deixou tudo mais rápido.

Antes disso fui desenhista de arquitetura (na prancheta), me formei como Técnico de Estradas (topógrafo) e fiz dois anos de Engenharia Civil. Ou seja, dei uma volta grande antes de virar jornalista, mas o desenho técnico já me acompanhava desde os 13 ou 14 anos. Fiz mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas, na Universidade Federal da Bahia, quando estudei o papel do design nas transformações do discurso jornalístico, linha de pesquisa que mantive no doutorado. Hoje, além de designer editorial, sou professor no curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza.



Como o livro foi estruturado editorialmente?


O livro está dividido em cinco capítulos mais os elementos pré-textuais: falsa folha de rosto, frontispício, dedicatória, carta, prefácio e apresentação, ladeado por uma ilustração que funciona como página capitular. O sumário vem logo após estas páginas pré-textuais, atendo-se apenas aos primeiros níveis de titulações (não inclui intertítulos). Os capítulos são divididos em duas partes: o texto original da dissertação e as "digressões", que só foram escritas 15 anos depois da dissertação (que originou o livro) e funcionam como atualizações do pensamento da autora, agora mais madura e mais experiente sobre o tema. Por serem partes diferentes, recebem outro tratamento.

O livro vale-se de desenhos do arquiteto Antônio Carlos Campelo Costa, um nome importante da arquitetura cearense, reconhecido pelo seu traço seguro e detalhista para desenhos de perspectivas arquitetônicas. Um traço com muito "molho", como se diz no jargão do desenho arquitetônico, com detalhes que dão bastante vida à paisagem retratada, mesmo em se tratando de edifícios. Os desenhos representam os bens tombados pelo patrimônio cultural nas diferentes esferas (municipal, estadual ou federal). Estes desenhos são utilizados nas aberturas e encerramentos.

O capítulo 4 traz uma relação dos bens tombados. Para ilustrar estes conteúdos foram utilizadas imagens do fotógrafo Celso Oliveira, carioca radicado no Ceará há mais de 30 anos, com um extenso acervo de fotografias, nos mais variados temas e com grandes publicações em livros pela sua antiga editora Tempo d'Imagem (em parceria com Tibico Brasil e Tiago Santana). As fotos de Celso são distribuídas de modo a criar um percurso geográfico pelos bens tombados, fazendo com que o leitor passeie pelos recantos do Centro da Cidade, pelas lagoas, praia e bairros mais distantes. Os bens estão distribuídos de acordo com o órgão responsável pelo tombamento (Prefeitura, Estado ou União), cada um com seu percurso específico. No que tange à edição das fotografias, levou-se em conta não só um itinerário para o leitor, mas também a harmonia entre as páginas da direita e da esquerda.

Houve sempre um cuidado para construir uma variação entre as composições que, ora eram simétricas, noutras eram assimétricas, numas as fotos vinham todas em cores, outras em p&b, algumas tinham uma área branca a servir de pastpatour (molduras). Sempre levando em conta os elementos construtivos da própria imagem, com cuidado para não deixar algo importante cortado pelo encontro das páginas no centro.


Algum ponto que merece destaque nessa construção visual?


Acho que um ponto a destacar foi a construção do grid, a disposição dos elementos, o que diferencia o conteúdo principal dos demais. Nestas horas, a experiência como jornalista, como editor, ajuda a definir um percurso de leitura. Além da leitura linear que o livro propõe, há também uma certa hipertextualidade com o uso das notas laterais, a ênfase dada pela cor e as demais variações tipográficas que são encontradas.


Que cuidados estão sempre em mente no desenho de um livro clássico?


O desafio deste livro era fazer uma publicação acadêmica mas com cara de fineart. O que caracteriza o aspecto clássico do livro, neste caso são alguns elementos como o grid, inspirado em Richard Hendel e sua obra O Design do Livro. Eu utilizei um arranjo clássico e geometricamente construído, partindo de diagonais que se entrecruzavam e geravam novos pontos de interseções que, por sua vez, levavam a novas linhas verticais ou horizontais que definiram áreas do livro, como a área lateral que foi utilizada para as notas contextuais, a área de fólios e os generosos vazios que deixam a mancha do texto meio que a flutuar na página. Busquei criar regras internas de proporção, tornando cada elemento uma necessidade intrínseca da página.

Quanto aos cuidados, um que sempre me norteia é a intuição, é a confiança na percepção visual. Já estou neste ramo há mais de 30 anos. Com o tempo, o olho nota se está tudo no seu devido lugar ou se há algo desequilibrado, excedendo. Tenho como norma prestar atenção para ver se as coisas fluem naturalmente ou se há algum ruído incomodando. Geralmente eu não acho o ruído rapidamente, tenho que me afastar, reduzir a nitidez, olhar de longe para tentar enxergar os elementos de composição e saber o que é que está fora. É preciso levar a sério o inconsciente e fazer com que ele venha à consciência. Para isso é preciso tempo, artigo de luxo nos dias de hoje.


Estudo de grid desenvolvido por Eduardo Freire para o livro Tombamento, Afetos Construídos





Como chegou ao desenho da capa? Foi uma etapa final?


Eu sempre deixo a capa por último. A capa, como vitrine (seja do livro, da revista ou do jornal) tem que sintetizar o espírito da publicação. Ela é uma amálgama que vai unir todos os elementos compositivos (tipografia, espaço, ilustrações, fotos, cores, linhas, gestos etc). Ao longo do processo as coisas vão mudando, sai um elemento, entra outro e alguns deles vão se repetir e dar consistência ao design e à identidade.

Neste livro em particular, a ideia da capa veio logo, mas eu a deixei de lado, utilizei na folha de rosto. O jogo com a tipografia, na composição do nome da autora, com letras em caixa baixa, mas com a inicial em versalete era algo que me remetia à simplicidade e modéstia, que são pra mim característica de Manoela Queiroz, a autora.

A princípio a ideia era colocar tudo em caixa baixa, mas resolvi fazer uma variação da forma como convencionalmente utilizamos o versal e o versalete. Já o nome "Tombamento", pela sua extensão e pela própria sonoridade, me remetia à caixa alta, a uma certa "severidade", seriedade, e desenhadas com letras serifadas remetiam ao romano clássico. Vale ressaltar que boa parte da inspiração do Direito contemporâneo vem do Direito Romano. Já o subtítulo "afetos construídos" veio naturalmente em caixa baixa, para criar um contraste tanto formal quanto conceitual. Se um era austero, o outro era mais leve, mais "amoroso", mais amigável. O termo "afeto" tem um sentido no Direito. Um bem afetado é um bem protegido. Há toda uma polissemia do termo que tentei retratar na escolha da tipografia e da cor da letra, uma pouco mais clara para não conflitar com o título em si.

Depois de muito refletir, vi que aquela folha de rosto era na verdade a capa. A escolha da imagem também tem suas razões de ser. O bem tombado retratado no desenho de Campelo é a Igreja do Pequeno Grande, um ícone da arquitetura gótica em Fortaleza e uma das mais bonitas, singelas e bem preservadas da cidade. Mas é também a igreja em que se casou a autora, logo ela carrega um elemento pessoal e um aspecto afetivo para Manoela. Mais um afeto construído.

Além disso, eu precisava de um desenho vertical, que eram poucos. Portanto, este desenho acabou por impor-se naturalmente, desde o começo. Finalizando esta digressão, há ainda o deslocamento dos elementos mais para a direita da página, meio que saindo da capa. Com isso a composição ficou assimétrica dando mais movimento a elementos tão estáticos. O fato de existir um desenho também serve para inserir o elemento humano (o traço pessoal de um artista), mas numa medida certa. Não caberia nunca uma fotografia, um recorte do real, carecia de algo mais humano.



Tem alguma ideia de quantas publicações já passaram por suas mãos?


Não tenho ideia. Já fiz publicações acadêmicas, somente com textos, nos tempos da Imprensa Universitária, quando diagramava livros para professores da Universidade. Mas depois fui me especializando em livros mais do tipo fineart, livros que demandam uma melhor produção gráfica. Já fiz livro de culinária (Sabores e Saberes, Delfina Rocha), de artesanatos (Mãos que fazem História, Cristina Pioner e Germana Cabral), livros de história (O Fiar e o Tecer, da FIEC; A História do Brasil em Manuscritos, do bibliófilo José Augusto Bezerra), livros de artistas plásticos como Diálogos, de Fernando França, ou de fotógrafos como Visões, de Maurício Albano, com textos de Rachel de Queiroz. É muita coisa. Mas ainda cabem mais.


Tem algum processo específico? Por onde começa o desenho de um livro?


Duas coisas acontecem meio que simultaneamente: o grid e a tipografia. O grid é definido pelo formato do livro, pelo tamanho, mas também pela entrelinha que se vai adotar no livro. A mancha gráfica é influenciada pela área que vai ocupar, mas também pela "cor" da mancha, que tem a ver com a densidade do texto escrito numa determinada tipografia. Além disso, tem a estrutura dos capítulos, ou seja, a distribuição horizontal do conteúdo: o grid da página tem muito a ver com a distribuição vertical da página isolada. Gosto muito de edição. Dificilmente eu seria um repórter, me identifico mais com o corte, com o refazer do material. Gosto de fazer títulos e sempre me meto nisso. No final das contas, se o autor me permitir, eu acabo me metendo na edição como um todo. Depois vem a paleta de cores e os elementos que vão criar identidade, como linhas, pontos, grafismos em geral.



Já estou neste ramo há mais de 30 anos. Com o tempo, o olho vai percebendo se tudo está no seu devido lugar. Tenho que me afastar, reduzir a nitidez. É preciso levar a sério o inconsciente para que ele venha à consciência.




Poderia nos falar um pouco da parceria com a autora neste projeto?


Já tive parceiros maravilhosos, autores que interagiam muito bem e respeitavam minhas decisões, ou questionavam e que acabavam me fazendo ver melhor o que precisava ser melhorado. Desenhar um livro é sempre um aprendizado novo, mesmo que o tema seja o mesmo, o autor seja o mesmo. Mas no caso desta parceria com Manoela foi algo especial. Nós não nos conhecíamos. Fui indicado a ela por um amigo, o bibliófilo José Augusto Bezerra, para quem já havia feito alguns livros. Ela me deixou bem à vontade, me mostrou suas referências, livros que admirava e eu mostrei algumas publicações que também me norteiam.

Nas conversas, sempre muito longas, mas também muito prazerosas, o assunto livro era permeado por muitos outros, do jazz a viagens, amigos em comum que nem sabíamos, jornalismo, design. Em certas ocasiões as conversas viravam meio que aula, pois ela perguntava sobre a origem dos conceitos escolhidos, sobre gestalt, tipografia, proporção áurea. Como já sou professor mesmo, me sentia muito à vontade para trocar ideia com aluna tão aplicada.

Cheguei a indicar textos, que foram devidamente lidos e discutidos em outras ocasiões. Os conceitos básicos do livro foram traçados muito rapidamente, em pouco mais de um mês já tínhamos tudo bem definido. Depois veio o refinamento e por fim as revisões e a finalização para o envio para a gráfica. Sem pressa, fizemos o livro em quatro meses, e o quinto foi na produção gráfica.



Para onde anda o design editorial?


Vejo o design editorial separado em duas categorias: o impresso e o digital. No impresso ainda perduram os livros acadêmicos, os romances, as poesias, etc., mas estes cada vez mais tendem a ir para a versão digital, até por uma questão de hábito de leitura que está se modificando, com as pessoas cada vez mais lendo nos smartphones, tablets, kindles e similares. Mas os livros também têm o aspecto de objeto de desejo. Ainda existem muitas pessoas que querem ter e guardar os livros. Para isso eles tendem a valorizar a forma. Um livro como este, de Manoela Queiroz, poderia muito bem ser algo focado apenas no conteúdo escrito com fotografias ilustrativas, impresso de um jeito mais simples.

Mas ele ganha um outro sentido e um outro valor quando vem como um livro de arte. Ele ganhará um lugar de mais destaque na estante, do que se fosse um livro em papel pólen, capa em cartão supremo tamanho 14 x 21cm, tornaria-se bem mais descartável. Então temos dois aspectos a considerar: o livro focado no conteúdo e o focado na perenidade do objeto.

O focado no conteúdo pode vir na forma digital, como e-pub, para ler nas diferentes plataformas digitais. Mas o livro de arte também pode ser pensado como um objeto dinâmico, multimídia, como animações, galeria de fotos, ampliações, como se faz com revista digitais. Acho que esta é uma tendência ainda pouco explorada, mas com a tecnologia já bastante madura. O desafio é trazer isso tudo para os diferentes tamanhos de telas, mas com a mesma carga emocional e o mesmo conteúdo. Esta tradução intersemiótica é que é o grande desafio para o design editorial contemporâneo.


Para terminar: uma citação que sempre te acompanha e inspira.

"Menos é mais". Mies van der Rohe.


Tombamento, Afetos Construídos
Manoela Queiroz Bacelar
IBDCult - Fortaleza / Ceará
Novembro de 2016

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